AOS SEPULTADOS VIVOS
Em algum dia do passado, um amigo dileto deu-nos um susto,
fazendo um surpreendente pedido: "Pedro, quando você me vir
no caixão de defunto, faça-me um grande favor, espete-me com
alguma coisa pontiaguda, por favor!" Indagamos qual a razão
daquele pedido folclórico e descabido e ele respondeu:
"Tenho verdadeiro pavor de ser sepultado vivo!" AÃ
lembramos-nos da famosa gripe espanhola de 1.918, que matou
mais de 20 milhões de pessoas no mundo, deixando cerca de
600 milhões de enfermos da gripe (influenza), até então um
mal desconhecido. Em São Paulo, em um só dia morreram 172
brasileiros, deixando mais de 7 mil doentes.
Os hospitais ficaram abarrotados, onde se começou a dar o
famoso "chá-da-meia-noite", destinado a desocupar leitos de
enfermos terminais para dar lugar aos doentes que tinham
alguma chance de cura. Os remédios então utilizados eram
caseiros e os recursos da medicina muito precários.
Recomendava-se uso de cebola, alho, gargarejos de água e
sal, chás e até cachaça. Alguns casos foram assustadores. Em
São Paulo, Eugênio Benzana, bêbado e epilético, foi
encontrado desfalecido e gelado no centro da cidade e
considerado vÃtima da gripe espanhola. Quando já estava no
caixão, acordou, para espanto de todos e saiu aos pulos pelo
cemitério. O paulistano João Turco, gripado e em estado
terminal, também foi encontrado desacordado. Preparou-se-lhe
os funerais, mas, de repente o homem acordou e percebeu que,
dentro do caixão estava sendo velado no interior de uma
capela. Levantou-se, provocando uma correria geral de
pessoas assustadas. Contamos esses casos ao advogado
taubateano Ari Bicudo, que não se surpreendeu nem um pouco,
relatando-nos que estava, certo dia, acompanhando um cortejo
fúnebre, quando os acompanhantes do féretro começaram a
ouvir batidas dadas do interior do caixão. Jurou que ouvira
também o ruÃdo das pancadas. Em novembro de 2.003, o
recém-nascido Ãndio Amalé foi enterrado vivo pela mãe Kanui,
Ãndia da etnia Kamaiurá, de Mato Grosso. Seus avós ainda
pisotearam a cova para ter certeza da morte do neto.
Trata-se de um ritual determinado pelo código cultural dos
Kamaiurás que manda enterrar vivo aqueles que são gerados
por mãe solteira. Duas horas após a cerimônia, sua tia
Kamiru empenhou-se em desenterrar o bebê. Hoje Amalé estuda
em BrasÃlia. Ele disse: Minha verdadeira mãe não é minha
mãe. Minha mãe é a Kamiru." Passeando pelo cemitério de
Campos do Jordão, onde sentimos uma forte sensação de paz e
tranqüilidade, costumamos, passo a passo, ler as inscrições
afixadas nas sepulturas: o nome, a data do nascimento, do
falecimento e as inscrições nelas contidas, desde as mais
simples às mais imponentes. É uma velha mania de conhecer a
história pelos túmulos. Freqüentemente, vem-nos à imaginação
o que teria ocorrido na famosa estação de cura de
tuberculose de Campos do Jordão, lá longe, pelos anos idos e
vividos do passado, nas primeiras décadas do século XX,
quando o lugarejo não dispunha de médicos e casas de saúde,
mas, onde ardia a febre, a dor, o sofrimento e as
hemoptises, embora ainda latejasse no peito as chamas da
esperança. E passeando pelas vias estreitas daquela
seqüência de túmulos, no silêncio de uma tarde deserta,
lembramo-nos de São Paulo Apóstolo: "Ó morte, aqui está a
tua vitória!" E com meus botões, comecei a pensar nas
pessoas que ali foram enterradas vivas no passado. Vivas
porque as imaginavam mortas. E sepultadas com flores e
orações, fazendo-nos evocar os versos de Augusto dos Anjos:
"Há flores que enfeitam a vida e há flores que enfeitam a
morte". E já saindo da casa do mortos, como que ouvindo o
silêncio tumular, não sei porquê, veio-nos à mente os versos
de Machado de Assis, dedicado à esposa Carolina: "Trago-te
flores - restos arrancados da terra, que nos viu passar
unidos e ora mortos nos deixa e separados".
Rezamos pelo mortos sepultados e pelos sepultados vivos. É
triste, mas existe.
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